Title: Constitucionalismo mon
1Constitucionalismo monárquico portuguêsRupturas
e continuidades
- A historiografia da Revolução tem-na glorificado
como um acto de ruptura. Ficando, nesse sentido,
prisioneira da imagem que a maior parte dos
revolucionários faziam da própria revolução. - Para uma discussão, em geral, do assunto, há
bibliografia geral v.g. Spang, Rebecca
L. Paradigms and Paranoia How modern is the
French Revolution? in The American Historical
Review, 108 (2003), S. 119-147 - No domínio da história constitucional, tende a
encarar-se o novo constitucionalismo como algo de
inaugural, sem raízes no Antigo Regime nem
continuidades de Antigo Regime na leitura das
novas ideias. - A crítica mais original à historiografia
constitucional comum foi feita por Fernando
Martinez Perez, "Ley expresa, clara y
terminante". Orden normativo y paradigma
jurisdiccional en el primer constitucionalismo
español", Historia constitucional. Revista
electronica de historia constitucional, 3(Junho
2002), http//hc.rediris.es/tres/indice.html
(20.11.2004)).
2Continuidades no constitucionalismo ibérico
- Supervivência do conceito anterior de soberania
como poder supremo, mas não exclusivo (a fórmula
preambular da Constituição de 1822) - Supervivência da ideia de auto-regulação dos
corpos políticos (como a Igreja, ou a família,
cada qual absoluto nos limites das suas
atribuições jurisdição), que a ordem
constitucional devia incorporar - Concepção da legislação, não como um acto de
vontade arbitrária, mas como a revelação de uma
ordem anterior e indisponível, como uma
deliberação de tipo "judiciário" (englobando um
"conhecimento de causa" e um "contraditório) ?
Assimilação das cortes a um "grande conselho" de
Antigo Regime, decidindo segundo o mesmo processo
de confronto de "votos - Supervivência da ideia de que a tradição (não a
natureza) gera situações jurídicas (algumas delas
constitucionais, que as novas constituições devem
reconhecer ou com as quais se devem acomodar)
(ex. continuação da dinastia)
3Continuidades no constitucionalismo ibérico
- Entendimento das atribuições dos poderes, não
como resultado de uma definição apriorística,
baseada na natureza do Estado - como grande
sujeito que "quer", "executa" e "delibera" -, mas
como resultado de uma distribuição
histórico-concreta de competências - Supervivência da ideia de que a manutenção da
constituição está, sobretudo, na reserva das
jurisdições, quer das pré-constitucionais, quer
das dos novos "poderes (monarquia limitada),
garantida por um sistema de contrapesos e de
controlos (checks and balances, como na
Constituição inglesa) - Supervivência da ideia de que qualquer acto do
poder pressupõe o acertamento prévio dos direitos
envolvidos, pelo que a administração não se pode
fazer sem um momento jurisdicional - Identificação dos direitos particulares (não
necessariamente individuais) com direitos
historicamente radicados (adquiridos por uso, por
concessão, geral ou particular), e não
abstractamente naturais ? Daí que os direitos não
sejam absolutamente invioláveis, mas violáveis
desde que se observasse o processo juridicamente
devido (de acordo com a natureza da sua génese e,
por isso, não necessariamente jurisdicional).
4História da Revolução de 1820 e da Constituição
de 1822
- 24 de Agosto de 1824.
- Um movimento militar proclama a Junta de Governo
do Porto, encarregada de convocar Cortes para se
fazer uma constituição que, mantendo a religião e
a dinastia, remediasse os males do Reino. - O governo acede (Instruções de 31.10), sendo
obrigado por um pronunciamento militar a adoptar
um sistema directo de sufrágio, igual ao da
Constituição de Cadiz (arts. 27 a 103 Instruções
de 22.11). - As eleições tiveram lugar em Dezembro de 1820 (no
ultramar, prolongaram-se até inícios de 1822). - O Projecto de Bases da Constituição (1821) é
apresentado como resultado da reflexão sobre o
antigo direito público português, mais do que
sobre teorias políticas modernas. - A nova Constituição como regeneração" da memória
da constituição tradicional.
5A Nação aparece como a entidade titular exclusiva
da soberania
- A Nação como "a união de todos os portugueses"
(art. 20). - Nação e Povo.
- A oposição entre liberdade dos antigos,
caracterizada pela "participação política" dos
"cidadãos activos", e a liberdade dos modernos,
caracterizada pela garantia de não intromissão do
Estado na esfera dos direitos individuais
(Benjamin Constant, 1819) -
- ? desvaloriza a participação política universal.
- Excluem-se do voto
- (i) os menores de 25 anos (ou, se casados, de 2
anos - (ii) as mulheres
- (iii) os sujeitos ao pátrio poder, como as
filhos-família, independentemente da idade, a
menos que exercessem ofícios públicos - (iv) os criados de servir que não vivam em casa
separada dos patrões (art. 33, II e III) - (v) os submetidos à autoridade religiosa regular,
i.e., os que vivam em comunidades monásticas - (vi) os socialmente inúteis, que nada aportavam à
república, como os vadios (art. 33, IV) aos
quais se acrescentariam, no futuro, os
analfabetos adultos (art. 33, VI).
6Fontes da Constituição de 1822
- Carta constitucional francesa de 1814
- Constituição espanhola de 1812 (Constituição de
Cadiz). - Bases da Constituição (1821)
7A Nação aparece como a entidade titular exclusiva
da soberania
- Do lado dos que podiam ser eleitos, as restrições
ainda eram maiores. - Exige-se renda suficiente,
- excluem-se aqueles cujas inclinações naturais
(falta de senso, irresponsabilidade) ou
vinculações sociais podem importar diminuição da
liberdade de opinião os falidos, os que servem
empregos da Casa Real, os libertos. - Excluem-se os estrangeiros, ainda que
naturalizados, pela presumível falta daquele amor
à pátria, como coisa orgânica, que só os naturais
de origem podem ter.
8Liberdade
- Como dependência exclusiva da lei (liberdade
republicana) - Como resistência (liberdade "liberal" ou "dos
modernos") - Como participação (liberdade "dos antigos")
- Repercussão sobre a relação entre lei e
direitos
9Soberania
- Consiste no facto de
- a Nação não ser património de ninguém,
- em só poder ser representada politicamente pelos
seus representantes eleitos - e em ter o exclusivo do poder constituinte e
legislativo (cf. arts. 26 e 27) - ? A soberania manifesta-se, antes de tudo, no
primado da lei, como expressão da
autodeterminação da Nação (cf. art. 104 "Lei é a
vontade dos cidadãos declarada pela unanimidade
ou pluralidade dos votos dos seus representantes
juntos em Cortes, precedendo discussão pública").
10Lei e direito
- Os representantes eleitos da Nação têm o
exclusivo da legislação (arts. 27, 102, 105,
110). - ? Embora não de fixar o direito. De facto, a
Constituição não definia as fontes de direito,
deixando esta atribuição livre nas mãos dos
juizes. - Em Portugal, o conglomerado de ordens normativas
que constituíam o direito estava definido na Lei
da Boa Razão, de 18.8.1769. - Porém, como esta era imprecisa na identificação
concreta das fontes direito, a definição destas
era feita quase livremente pela doutrina ou, caso
a caso, pelos julgadores.
11Manifestações do primado da lei
- Vinculação de todos os poderes, agentes e
actividades do Estado em relação à lei - o poder executivo tem como finalidade "fazer
executar as leis" (art. 122) - os impostos não são obrigatórios se não tiverem
sido votados em cortes (arts. 224, 234) - os funcionários não são proprietários dos seus
ofícios (art. 13), respondendo pelas violações da
constituição e das leis (art. 14) - as câmaras estão devem obediência às leis nas
matérias de governo administrativo e económico
(arts. 216, 218) - os direitos individuais são reconhecidos, nos
limites da lei.
12Igualdade perante a lei (art. 9)
- Por ora, ainda não se declaram contrários à
Constituição outros aspectos da desigualdade
própria da sociedade de ordens - como os direitos senhoriais
- a desigualdade dos sexos
- a relevância legal da religião
- os títulos nobiliárquicos, a escravatura).
13Divisão de poderes
- Carácter funcional à defesa da liberdade.
- Consistindo a liberdade na "exacta observância
das leis" (art. 2), a questão da divisão de
poderes - que a doutrina constitucional com
origem em Montesquieu e na experiência
constitucional inglesa considerara como pedra de
toque do constitucionalismo moderno - passa
necessariamente para um segundo plano.
14Poder legislativo
- Uma única câmara, eleita de acordo com o sistema
eleitoral já descrito (arts. 32 ss.). - As legislaturas duravam dois anos (art. 41), com
sessões anuais de três meses (art. 83). - Cada deputado representava toda a Nação (art.
94). - As atribuições essenciais das Cortes eram as
legislativas (a iniciativa, discussão e votação
das leis, sua interpretação e revogação o
controlo da observância da Constituição e das
leis) - Mas também de governo a promoção do bem geral da
Nação a fixação anual dos efectivos militares a
fixação anual dos impostos e as despesas
públicas a criação e supressão de empregos
públicos, bem como a fixação dos respectivos
ordenados a avaliação da responsabilidade
(política, criminal e cível) dos secretários de
Estado e demais funcionários (arts. 102 e 103 e
ss.).
15Poder executivo
- O poder executivo (residual ...) residia no rei e
tinha como atribuições gerais "fazer executar as
leis expedir os decretos, instruções e
regulamentos adequados a esse fim e prover tudo o
que for concernente à segurança interna a externa
do Estado, na forma da Constituição" (art. 122). - Esta fórmula genérica concedia ao executivo um
âmbito muito vasto de atribuições, em parte
concorrente com algumas das atribuições confiadas
ao Legislativo - Os resíduos da royal prerogative ou do princípio
monárquico.
16Poder judicial
- A Constituição revela, nesta matéria, uma tensão
entre dois pólos. - Por um lado, o de garantir a independência dos
tribunais, que corresponde à ideia do seu papel
central na defesa do sistema constitucional e na
defesa pública, imparcial e neutra dos direitos
dos cidadãos. - Mas, por outro lado, a Constituição coloca os
juizes e oficiais de justiça sob estrita
vigilância, quanto a abusos e prevaricações, o
que corresponde à imagem popular de uma justiça
arbitrária, corrupta e corporativa. - Medidas suplementares visavam aumentar a
confiança popular na justiça. Uma delas era o
júri eleito (cf. art. 178), julgando sobre a
matéria de facto, previsto, tanto para as causas
criminais - expressa e especialmente referida é a
sua intervenção no julgamento dos delitos de
abuso da liberdade de imprensa -, como para as
cíveis.
17Carta Constitucional (1826). História da Carta
- A Carta constitucional esteve em vigor durante 84
anos, até ao fim da monarquia, embora com lapsos
- insurreição miguelista (13.03.1828-26.05.1834)
- reposição em vigor da Constituição de 1822,
depois da Revolução de Setembro
(10.9.1836-4.4.1838 - vigência da Constituição de 1838
(4.4.1838-27.1.1842). - e modificações, que resultaram das várias
revisões constitucionais que originaram outros
tantos actos adicionais - 05-07-1852,
- 24-07-1885,
- 03-04-1896,
- 23-12-1907.
18Fontes da Carta Constituconal
- A Carta constitucional é promulgada sob o impacto
filosofia política liberal-aristocrática de
Benjamin Constant e de François Guizot. - Nela se mantém a generalização da cidadania a
todos os nacionais (agora entendidos como todos
os nascidos em território português, do Reino ou
dos seus domínios (arts. 1 e 7) (o que incluiria,
nomeadamente, as populações não europeias das
colónias). - No entanto, esta generalização corresponde apenas
à generalização da capacidade de gozo dos
direitos civis, cuja base a Carta define como
sendo "a liberdade, a segurança individual e a
propriedade" e que garante a todos os cidadãos
(art. 145).
19A cidadania
- Porém, já ao tratar dos direitos de participação
política, a Carta - assume implicitamente a
distinção de B. Constant entre cidadãos activos e
cidadãos passivos. - Apenas reconhece direitos políticos (pelo menos
na sua vertente de direitos eleitorais, cf. artº
63) - a alguns - nomeadamente em função da sua renda (Cf. arts. 65
a 68 (de 10000 para ser eleitor a 40000 para
ser elegível como deputado). - O sufrágio indirecto, consagrado nestes artigos
da Carta (só substituído pelo sufrágio directo
pelo Acto adicional de 1852) era outro meio de
"filtrar" a vontade dos menos capazes pela
mediação dos mais capazes.
20Os direitos e a Constituição.
- No seu último artigo, a Carta garante os direitos
civis e políticos - "Art. 145 - A inviolabilidade dos Direitos Civis
e Políticos dos Cidadãos Portugueses, que têm por
base a liberdade, a segurança individual e a
propriedade, é garantida pela Constituição do
Reino, pela maneira seguinte". - Concepção de direitos próxima do modelo liberal
da Europa continental - Os direitos são garantidos, e não criados pela
Constituição ("têm por base a liberdade, a
segurança individual e a propriedade". - São os direitos da sociedade natural, fundados na
própria natureza do homem, mas tutelados, agora,
pela sociedade civil. - Esta tutela legal é dada, ao mesmo tempo, pela
Constituição e pelas leis ordinárias,
designadamente pelas leis civis e pelas leis
penais. - ?"Art. 145 - A inviolabilidade dos Direitos Civis
e Políticos dos Cidadãos Portugueses, que tem por
base a liberdade, a segurança individual e a
propriedade, é garantida pela Constituição do
Reino, pela maneira seguinte ...".
21A garantia de direitos
- O primeiro dos meios de garantia de direitos era
- na continuação do direito de Antigo Regime - a
garantia, em relação ao Estado, das esferas
jurídicas dos particulares protegidas pelo
direito (pelas leis), assegurando a sua
intangibilidade ou, pelo menos, o dever de
indemnizar por parte dos poderes públicos que as
ofendam. - Quanto ao âmbito (aos actos administrativos
recorríveis e ao fundamento e resultado do
recurso), o recurso contencioso contra actos da
administração era, apenas, um contencioso "de
legalidade", - ?escapando-lhe o domínio dos actos do poder que,
ofendendo direitos, não pudessem ser arguidos de
ilegalidade, ou seja, que se situassem no domínio
das opções politicas ("poder discricionário da
administração"). - E, por outro lado, o recurso produziria apenas a
anulação do acto administrativo recorrido, e
nunca a sua substituição por um outro
correspondente à legalidade (ou seja, tratava-se
de um recurso de mera anulação).
22A garantia da legalidade
- Numa primeira fase (Decreto nº 23, 1832), a
possibilidade de apelo reduzia-se aos actos
administrativos lesivos de direitos patrimoniais. - Em 1835 (CL 35.4), as questões contenciosas
(relativas, portanto a ofensas de direitos pela
administração) são devolvidas aos tribunais
comuns, solução que se mantém com o Código
Administrativo de 1836. - O Código Administrativo cabralista de 1842
organizou de novo tribunais administrativos para
conhecer dos recursos dos actos da administração
embora agora com fundamento em qualquer tipo de
ilegalidade, mesmo que não se ofendessem
direitos patrimoniais. - Em 1870, o Conselho de Estado político separou-se
do administrativo, dando-se a este o nome de
Supremo Tribunal Administrativo. - Esta tibieza no reconhecimento de direitos dos
cidadãos contra o Estado e na institucionalização
de meios de os tornar efectivos era o produto de
uma longa tradição. - Não tanto a tradição do direito comum do Antigo
Regime. Mas, sobretudo, a tradição combinada do
absolutismo monárquico setecentista (e, mesmo,
oitocentista) e do jacobinismo revolucionário.
Perante o interesse público - fosse ele
representado pelo rei ou pelo parlamento - o
indivíduo poucos direitos teria.
23A garantia da constitucionalidade. Fundamentos
- O princípio mais comumente aceite era o de que o
poder estava limitado pela Constituição - A Carta tinha sido outorgada pelo rei, como
representante da Nação (cf. art. 12), nele
residindo o poder constituinte originário e o
dever primeiro de "observar e fazer observar a
Constituição" (art. 76). - Daí que
- (i) as cortes não pudessem alterar a constituição
sem o acordo do rei, que devia sempre sancionar
as reformas constitucionais, - (ii) que a necessidade de sanção real das leis
constituísse a primeira defesa em relação à
omnipotência do legislativo.
24A garantia da constitucionalidade. Argumentos
literais.
- (i) o art. 140, ao estabelecer um processo
legislativo especial para alterar as matérias
constitucionais da Carta, implicitamente separava
o poder constituinte do poder legislativo
ordinário, retirando a este último a faculdade de
emitir leis anti-constitucionais - (ii) o art. 139 dispunha que "as cortes gerais no
princípio das suas sessões examinarão se a
Constituição do Reino tem sido exactamente
observada, para prover como for justo" - (iii) as autoridades e titulares de cargos
públicos tinham que jurar "cumprir e fazer
cumprir a Constituição" - (iv) todo o Cidadão podia "apresentar por escrito
ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações,
queixas ou petições, e até expor qualquer
infracção da Constituição, requerendo perante a
autoridade a efectiva responsabilidade dos
infractores" (art. 145, 28)
25A questão especial da inconstitucionalidade das
leis
- Podia dizer-se que uma decisão das cortes que
obtivesse maioria parlamentar e sanção real tinha
passado por dois crivos de apreciação da sua
constitucionalidade, ambos eles revestidos da
dignidade de representantes da Nação (as cortes e
o rei). - Como o rei detinha também o poder moderador,
"chave de toda a organização política", a quem
competia velar "incessantemente sobre a
manutenção da independência, equilíbrio e
harmonia dos mais poderes políticos", e que a
sanção das leis era uma atribuição deste poder (e
não do executivo, cf. art. 74, 3), a firmeza
das leis aprovadas pelo rei ainda ficava mais
reforçada. - Percebe-se, portanto, que se manifestasse uma
resistência séria em admitir que outro órgão de
soberania - nomeadamente, os tribunais - pudessem
invalidar ou desaplicar por inconstitucional um
acto legislativo ? O único controlo do
legislativo seria, portanto, político.
26As garantias institucionais da constitucionalidade
- Desde os anos '30 que alguma jurisprudência e
alguma doutrina propunham um controle judicial
difuso da constitucionalidade. - Isto não representava nenhuma inovação em relação
aos sistema de controlo da legitimidade das leis
e dos actos de poder em vigor no Antigo Regime. - Os argumentos doutrinais
- Os juízes, como todas as autoridades públicas,
tinham jurado - no acto de posse "cumprir, e
fazer cumprir" a Carta e, por isso, não deviam
poder aplicar legislação que a contrariasse, do
ponto de vista material, orgânico ou formal. - A jurisprudência variou, sendo difícil avaliar a
orientação dominante na prática judicial
quotidiana se (i) o acatamento da lei
inconstitucional, se (ii) a sua desaplicação, por
contrariar a constituição (desde logo a
constituição formal, mas também a constituição
material).
27A divisão de poderes
- A Carta foi uma das poucas constituições
oitocentistas que se afastou da clássica
tripartição de poderes. - Partindo do princípio de que "a divisão e
harmonia dos Poderes Políticos é o princípio
conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais
seguro meio de fazer efectivas as garantias"
(art. 10), - a Carta estabelece quatro poderes (o legislativo,
o moderador, o executivo e o judicial), - dos quais um (o moderador) é definido como "a
chave de toda a organização política" (art. 71) - todos menos um (o judicial) estão nas mãos dos
"representantes da Nação portuguesa" ("o rei e as
cortes gerais", art. 12).
28O poder moderador. Competências
- No sistema da Carta (art. 74), as atribuições do
poder moderador são - a nomeação de pares sem número fixo
- a convocação extraordinária das cortes "quando
assim o pede o Bem do Reino", - a sua prorrogação, adiamento ou dissolução
- a sanção dos decretos das cortes, para que tenham
força de Lei - a livre nomeação e demissão dos ministros
- o perdão de penas e a amnistia.
29Poder moderador. Críticas
- No entanto, esta hegemonia do poder moderador
supunha o prestígio da instituição real. - Na sua falta, surgem críticas de natureza
teórica, questionando a hierarquização dos
poderes do Estado sob a hegemonia do rei. - Uns pronunciam-se,
- ou pela supremacia do legislativo, de acordo com
a lógica representativa, - ou do judicial, como poder naturalmente
especializado na resolução de diferendos. - Outros críticam a confusão entre funções do
Executivo e funções do Moderador que, na prática,
significavam a rentabilização pelo executivo das
prerrogativas do poder moderador. - De facto, depois do estabelecimento do
rotativismo parlamentar (maxime nos anos
1851-1865 mas sobretudo 1878-1890), a existência
de um poder moderador, mal se justificava, até
porque o Acto Adicional de 1896 sujeitou os actos
do poder moderador à referenda ministerial.
30O poder legislativo. A Câmara dos Deputados.
- O poder legislativo residia nas cortes e no rei
(" compete às Cortes, com a sanção do rei",
art. 13). As cortes compunham-se de duas câmaras
- a Câmara dos Pares e a Câmara dos Deputados. - A Câmara dos Deputados era constituída por um
número de deputados - originalmente nomeados por
eleição indirecta (art. 63) e censitária -
proporcional à população das circunscrições
eleitorais. - A eleição indirecta era apresentada como uma
forma de compatibilizar um certo alargamento do
direito de sufrágio com a fiabilidade das
escolhas o povo participava, mas apenas
confiando a pessoas mais capazes a designação
definitiva dos seus representantes. - A Carta (bem como a Const. de 1838) estabelecia
um sufrágio restrito, em que o direito de voto
apenas era concedido aos maiores de 25 anos que
tivessem um rendimento mínimo de 100 00000. Para
dar uma ideia do que isto podia significar, um
elemento de referência uma jorna diária, pelos
meados do séc., era de c. 650 rs... Em termos
europeus, não se tratava de um valor muito
elevado. - O Acto Adicional de 1852 inaugurou um outro
modelo, em que o rendimento mínimo podia ser
suprido por habilitações literárias mínimas ou,
mais tarde (1878), também pela qualidade de chefe
de família. Em qualquer caso, o universo dos
votantes ficava muito aquém de abranger toda a
população.
31O poder executivo
- O poder executivo residia no rei, que o exercia
pelos seus ministros (ou "secretários") de Estado
(art. 75). - Todas estas atribuições eram da responsabilidade
do rei. - No entanto, sendo este inviolável e sagrado (art.
72), era necessário que alguém assumisse a
responsabilidade política e até criminal dos seus
actos. Era esta a finalidade do instituto da
referenda ministerial (art. 102), que obrigava os
ministros a referendar e assinar "todos os actos
do poder executivo, sem o que não poderão ter
execução". Esta assinatura responsabilizava o
ministro pelo acto praticado, em termos de este
nem sequer se poder eximir invocando a ordem real
(art. 105). - Embora isto não transpareça da ordem de
enumeração do art. 75 da Carta, o núcleo mais
permanente das atribuições do executivo é o
"governo" e, dentro deste, a "administração".
32O poder legislativo. A Câmara dos Pares.
- A Câmara dos Pares era, originariamente,
constituída por pares vitalícios e hereditários,
nomeados pelo rei, sem número fixo (art. 39). - Embora correspondesse a um modelo muito comum nos
Estados europeus, a sua justificação era
problemática. - Alguns autores - como o monárquico conservador
Royer Collard - justificavam-na como "auxiliar do
rei, para as ondas democráticas não abalarem
constantemente o trono". - Outros - como François Guizot - relacionavam a
sua existência com o facto de, na sociedade,
alguns cidadãos terem sempre "uma maior
autoridade do que os outros, pela riqueza, pelo
esplendor de nascimento, pelos merecimentos ou
pela reputação estes cidadãos formam uma
ordem social distinta, e por isso deve-se-Ihes
dar na constituição lugar que ocupam na
sociedade".
33O poder executivo.
- O poder executivo residia no rei, que o exercia
pelos seus ministros (ou "secretários") de Estado
(art. 75). - Todas as suas atribuições eram da
responsabilidade do rei. - No entanto, sendo este inviolável e sagrado (art.
72), era necessário que alguém assumisse a
responsabilidade política e até criminal dos seus
actos. Era esta a finalidade do instituto da
referenda ministerial (art. 102), que obrigava os
ministros a referendar e assinar "todos os actos
do poder executivo, sem o que não poderão ter
execução". - Esta assinatura responsabilizava o ministro pelo
acto praticado, em termos de este nem sequer se
poder eximir invocando a ordem real (art. 105)
mas limitava o poder do rei, ao exigir a
cooperação de um ministro. - Embora isto não transpareça da ordem de
enumeração do art. 75 da Carta, o núcleo mais
permanente das atribuições do executivo é o
"governo" e, dentro deste, a "administração".
34Poder executivo ou poder governamental ?
- As atribuições do governo vêm referidas nos 3
e 4 (nomeação de magistrados e funcionários), 12
(expedição de decretos, instruções e
regulamentos adequados à boa execução das Leis e
13 (prover a tudo que for concernente à
segurança interna e externa do Estado, na forma
da Constituição). - De facto, quem ler desatentamente a enumeração de
funções do art. 75, ficará com a ideia de que o
executivo se limitava a assegurar passivamente as
clássicas funções de execução das leis e de
defesa. Isto estava, porém, bem longe de ser
verdade.
35Poder executivo ou poder governamental ?
- As outras atribuições do executivo eram
- Convocar as novas Cortes Gerais ordinárias
teoricamente, esta atribuição devia competir ao
poder moderador ( 1.) - Nomear ou prover dignidades eclesiásticas e
nomear magistrados e demais empregos civis,
políticos, militares e diplomáticos ( 2, 3, 4,
5 e 6) - Dirigir a política externa ( 7, 8 e 9)
- Conceder Cartas de naturalização e distinções (
10 e 11) - 13. - Decretar a aplicação dos rendimentos
destinados pelas Cortes nos vários ramos da
Pública Administração - 14. - Conceder ou negar o beneplácito aos
documentos eclesiásticos que se não opuserem
à Constituição, e precedendo aprovação das
Cortes, se contiverem disposição geral.
36Poder executivo ou poder governamental ?
- Uma vez passada a onda fisiocrática que era,
sobretudo, uma reclamação de liberdade cidadã
perante a organização corporativa e, depois,
perante o Estado de polícia, o Estado liberal
continental cujo protótipo (e não a excepção) é
o Estado administrativo e empreendedor do I
Império francês encarregou-se da função de
estabelecer a ordem e de garantir a estabilidade,
o que não excluía um pronunciado dirigismo
económico, social e político. - Neste sentido, a função dita executiva
transformou-se progressivamente numa função
autonomamente activa e politicamente dominante
quase todos os actos do Estado eram, na verdade,
actos executivos, descontados os comparativamente
raros actos legislativos e os dispersos e de
impacto essencialmente inter partes - actos
judiciais. - Isto já era assim no momento em que a Carta
surgiu. Mas, durante a sua longa vigência,
sê-lo-á cada vez mais, nomeadamente quando o
Estado se passa a ocupar de tarefas de fomento
metropolitano e colonial, da educação e, até, de
assistência e de regulação industrial. - Também na constituição inglesa haveria que
distinguir uma constituição teórica, dominada
pelo princípio dos checks and balances e uma
constituição prática, em que ao governo vinham
a caber atribuições materialmente legislativas.
37Governo e parlamento
- Segundo a lógica do parlamentarismo, vigorava o
princípio da responsabilidade do governo perante
as câmaras e a consequente necessidade de que ele
reflectisse o equilíbrio das forças políticas no
parlamento. - Este relevo do parlamento era, porém, mitigada
pelo princípio monárquico ou prerrogativa
régia, correspondente à existência do poder
moderador, que dava uma certa margem de imposição
de um executivo sobre o legislativo (governos sem
apoio parlamentar, nomeação de pares para que o
governo tivesse maioria na câmara alta, adiamento
ou dissolução da Câmara dos Deputados). - O governo praticava actos normativos que cabiam,
em teoria, ao poder legislativo decretos com
força de lei (ou decretos ditatoriais), a que as
cortes raramente negavam a ratificação e que os
tribunais costumavam aceitar como válidos
decretos emitidos pelo governo por delegação
legislativa das cortes regulamentos inovadores
(a distinção entre lei e regulamento era
difícil). - Para além dos actos normativos, o executivo
tomava decisões casuístas, ao abrigo da lei ou no
âmbito dos seus poderes discricionários. Desde
cedo, que parte destes actos (os actos políticos)
foram qualificados como insindicáveis quanto á
sua legalidade. Isto queria dizer era que,
doravante, também o governo podia propor
finalidades ao Estado com aquela liberdade que,
até então, fora privativa do legislador. O que
constituía uma evolução político-constitucional
notável.
38A governamentalização do poder
- O que agora se verifica, porém, é que nem o
parlamento tem a possibilidade de fiscalizar toda
a frenética actividade governativa, nem pode
escapar aos poderes de condicionamento de que o
governo dispõe, nomeando funcionários, gerindo a
atribuição de benesses, lançando melhoramentos,
apoiando empresas, concedendo serviços. - O nosso governo parlamentar enferma de três
vícios O excessivo predomínio do poder
executivo a má constituição do parlamento a
defeituosa organização dos partidos políticos. O
excessivo predomínio do poder executivo determina
a subordinação do parlamento e tira-lhe toda a
independência para fiscalizar os actos deste
poder. Desse excessivo predomínio do poder
executivo na nossa vida politica, é que resultam
as frequentes ditaduras e delegações das funções
legislativas no governo. É necessário reforçar o
poder legislativo e para isso encontramos
suficientes três disposições da proposta de 14 de
marco de 1900 a reunião das cortes por direito
próprio, a restrição da faculdade da sua
dissolução e a não aplicação pelo poder judicial
dos decretos, regulamentos ou ordens do governo
que não sejam conformes às leis É certo que
alguns escritores, como Poinsard, mostram-se
favoráveis à aplicação entre nós do regímen
simplesmente representativo, não atendendo afinal
a que o mal de toda a nossa vida constitucional
tem sido o excessivo predomínio do poder
executivo, que aquele regímen ainda viria a
fortificar (Marnoco e Sousa, Direito
político , cit.,, 386).
39A encarnação institucional do Estado
- Embora a Carta não estabelecesse o número de
secretarias de Estado (ao contrário do que
acontecia na Constituição de 1822 Negócios do
Reino, Justiça, Fazenda, Guerra, Marinha e
Negócios Estrangeiros), logo em 1834, D. Pedro
II provê as seis secretarias de Estado
tradicionais. Em 1852 (30.8), cria-se a
Secretaria de Estado das Obras Públicas, Comércio
e Indústria, correspondendo ao novo ênfase posto
nas políticas de fomento do fontismo. Em 1870
(22.6), Saldanha cria, em ditadura, o Ministério
da Instrução Pública (que é efémero). - Crescimento do aparelho de Estado, em termos
financeiros e humanos.
40Crescimento do número de funcionários
41Crescimento do número de funcionários (sem
militares)
42Crescimento do número de funcionários (sem
militares)
43Os partidos e a gestão dos funcionários
funcionários
- A regeneração quando subiu ao poder em 1871
foi renovando o pessoal das secretarias,
promovendo reformas, criando lugares,
determinando aposentações, concedendo benefícios.
O partido progressista entrando para o poder
encontrou este estado de coisas que devia
respeitar, e respeitaria do certo, se os
beneficiados da regeneração cumprissem o seu
dever, que era completa abstenção no acto
eleitoral. Este dever foi-lhes recomendado
expressamente com a devida cominação de penas.
Como o dever não foi cumprido, os efeitos
fizeram-se sentir. Nada mais natural nada mais
justo, António Cândido Ribeiro da Costa,
Discurso proferido na Câmara dos Senhores
Deputados nas sessões de 17 e 18 de Fevereiro de
1880, Lisboa, 1880(p. 31). - O mecanismo está bem descrito. O fundo de postos
burocráticos era utilizado pelos governos para
distribuir benesses e para suscitar o
empenhamento partidário dos beneficiados. O
crescimento dos efectivos burocráticos potenciava
ainda a importância política desta troca
44Dependência dos funcionários
45Dependência dos funcionários
- Quanto ao carácter dependente e precário das
classes médias e inferiores do funcionalismo,
estes funcionários seriam mal pagos, crivados de
deduções (que atingiam, em média, 40 dos
proventos), apenas podendo sobreviver com base em
benesses distribuídas superiormente (comissões,
gratificações, horas extraordinárias, serões e
abonos vários). Os próprios funcionários
administrativos superiores (directores-gerais e
chefes de repartição) estariam dependentes, pelos
mesmos mecanismos, dos titulares das pastas
(ibid.). Para além de que o ingresso e progresso
na carreira se faziam, em geral, por mecanismos
de escolha, garantindo novas fidelidades. - O funcionário nem sequer estava garantido contra
um despedimento arbitrário ou punitivo, pois se
entendia que o funcionário não tinha direito ao
lugar, podendo ser despedido por necessidades do
serviço. - Para se obter a melhor execução da lei, é
necessário que os executores dela sejam
responsáveis pelos seus actos as garantias da
sociedade e do individuo dependem mais da fiel
execução da lei, do que da sua bondade absoluta.
A boa execução da lei depende igualmente da
competência, saber, zelo e honradez dos seus
executores e para que estes requisitos sejam uma
realidade é indispensável que o ministro possa
livremente escolher os subalternos, e demiti-los
sem prévio julgamento para que o chefe de cada
ramo da administração seja responsável é
necessário que ele possa tornar efetiva a
responsabilidade dos seus subordinados (António
Pereira Jardim, Princípios de finanças ...,
Coimbra, 1873).
46Centro e periferia pluralismo e
descentralização.
- Em geral, estabelece-se como axioma que os
poderes dos vários órgãos e agentes do Estado não
são originários, como consequências naturais das
suas funções ou estatuto, mas antes provenientes
de um acto de delegação dos órgãos de soberania.
A ideia de delegação constitui, doravante, facto,
um princípio essencialmente contemporâneo de
construção do aparelho de Estado. - Esta nova ideia é visível quando confrontado com
o discurso da descentralização, pois por aí se vê
de forma particularmente clara a distinção entre
o sistema pluralista do Antigo Regime, recusado,
e o sistema monista descentralizado, agora
proposto. - O Estado, que tinha por base os municípios, era
um corpo formado de membros desconexos, a que
faltava a vida de relação, a unidade e a
harmonia, que só podem provir da aplicação de
princípios gerais estribados na justiça e no
direito, e inspirados pelo interesse comum ....
O municipalismo multi-forme, incoerente,
individualista, privilegiado e bárbaro da idade
media não era a descentralização administrativa,
era o fraccionamento do Pais em circunscrições
isoladas e às vezes hostis ... era a negação de
todos os princípios gerais de direito politico,
civil e criminal, a condenação de toda a economia
publica, a supressão de todo o viver nacional, o
menosprezo de todos os interesses gerais, e o
impedimento de todo o progresso e civilização da
sociedade. (Joaquim Thomaz Lobo dÁvila, põe em
destaque, nos seus importantes Estudos de
Administração , 1874, p. 19). - No entanto, a questão da centralização /
descentralização não tinha uma única leitura. Foi
antes uma questão polémica que percorreu todo o
séc. XIX
47Sociologismo, institucionalismo e descentralização
- O institucionalismo dos finais do séc. XIX
reforça as ideias descentralizadoras. Era por
meio dela que se produziria uma repartição das
funções da administração pública entre 1. órgão
da administração do Estado, centrais e locais 2.
autarquias territoriais 3. autarquias
institucionais 4. particulares, por concessão. - São estas as influências que se fazem já sentir
na obra de José Frederico Laranjo, quando afirma
que, para que haja descentralização
administrativa, é preciso que haja o exercício
livre das atribuições dos corpos locais por eles
mesmos, sem ingerência do governo, além da
inspecção, para submeter os seus actos ao poder
judicial, quando eles contrariem as leis. - De qualquer modo, e apesar de uma contínua
corrente doutrinal anti-centralizadora por
vezes com alguma expressão legislativa, como nas
reformas de 1836 e no Código administrativo de
1878 -, a estadualização da vida política não
cessou de se acentuar. - A nova organização do poder governativo
encontrava-se muito mais apta, apesar da
debilidade das suas extensões periféricas, a
desempenhar as funções de uma administração
activa, pelo progresso das suas estruturas e
organização no sentido de uma administração deste
tipo
48A redução dos poderes periféricos os senhores
de terras
- Os senhorios não constituíam já, do ponto de
vista político, o mais importante concorrente da
coroa. Na verdade, no sistema político português
do Antigo Regime, os senhores apenas gozavam da
jurisdição intermédia. - Em 1792, extingue-se a jurisdição dos donatários
- no sentido em que estes a tinham no Antigo
Regime, isto é, como jurisdição intermédia -,
embora saiam reforçados os seus poderes de nomear
ou confirmar justiças locais, agora atribuídos
genericamente, com o que se abole um anterior
princípio de que a eleição das justiças era, em
geral, dos povos. O poder senhorial perde em
relação à coroa, mas ganha algo em relação ao
poder municipal. - Finalmente, as constituições (Const. 1822, tit.
V Carta, tit. VI) e a reforma judiciária (Dec.
nº 24, de 16 de Maio de 1832) acabam de vez com
as jurisdições dos donatários.
49A redução dos poderes periféricos a Igreja
- No Antigo Regime, a jurisdição eclesiástica
incluía a sua autonomia de governo e a existência
de um foro espiritual (que abarcava causas de
natureza temporal). - Quanto à nomeação de bispos os bispos estavam
sujeitos à inspecção do governo gozando, em
contrapartida, de honras, prerrogativas (v.g.,
eram conselheiros, pares, grandes do Reino,
vogais natos, órgãos administrativos) e
remuneração civil. - Quanto aos párocos, eles eram considerados,
durante o regime constitucional monárquico, como
empregados espirituais e civis, pelo que a sua
nomeação resultava da apresentação régia. As suas
funções espirituais são - o governo interno da sua comunidade paroquial
- vastas funções civis, abrangendo campos como as
operações eleitorais, o recrutamento militar, a
colaboração na administração civil das freguesisa - Quanto ao foro eclesiástico. Em 1821, foi abolido
o Conselho-Geral do Santo Ofício e as devassas do
ordinário. Em 1832, a Reforma Judiciária (Decreto
n.º 24, de 16 de Maio) extingue o foro
eclesiástico nas causas temporais ou de foro
misto (artigo 117) mesmo nas espirituais, a
competência punitiva dos bispos é limitada a
penas espirituais, pelo Decreto de 19 de Julho de
1833.
50A redução dos poderes periféricos a Igreja
- Em todo o caso, houve alguns domínios da
jurisdição da Igreja que, durante todo o século
XIX, se mantiveram intactos. - Um deles foi o da competência jurisdicional da
Igreja em matéria de casamentos católicos,
dominantes no País, que continuaram, mesmo depois
do Código Civil, a ser regulados, no plano das
relações pessoais, pelo direito canónico. - Outra reserva jurisdicional - agora ao nível do
direito vivido, que não do direito oficial -
diz respeito ao papel das autoridades
eclesiásticas (sobretudo os párocos, mas também
as confrarias ou irmandades) como ordenadoras da
vida colectiva e como mediadoras informais de
conflitos nas comunidades rurais, sobretudo no
Norte do País.
51A redução dos poderes periféricos Concelhos ou
Municípios
- Para as correntes revolucionárias, o poder das
câmaras tradicionais era um dos alvos a abater.
Nas cortes vintistas, as posições oscilaram entre
os que as queriam manter, mas democratizadas, e
os que as queriam substituir, mais ou menos
claramente, por órgãos periféricos do Estado.
Esta última foi a orientação que prevaleceu
(administradores gerais). - As reformas financeira, administrativa e judicial
de Mouzinho da Silveira, de 16.5.1832, estabelece
um novo sistema, em que as câmaras são despojadas
de todos os poderes executivos, confiados agora a
funcionários governamentais, e em que a
elaboração de posturas passa a carecer de
aprovação superior . - Esta foi a orientação que prevaleceu até ao fim
da monarquia. - Em síntese, importa dizer, quanto a este aspecto,
que com a política de centralização
administrativa se obtêm dois resultados. Por um
lado, desarticula-se um pólo periférico de poder.
Mas, por outro, cria-se um dispositivo político
ao tornar disponíveis para o poder central
algumas milhares de cargos públicos distritais e
concelhios, atribui-se ao poder central a
possibilidade de disciplinar pela positiva,
comprando fidelidades com cargos e alargando,
assim, a rede da sua influência social.
52O Poder judicial
- A Carta constitucional de 1826 parece limitar um
pouco mais a esfera de autonomia dos juízes, ao
estabelecer, art. 119, que Os jurados
prenunciam-se sobre o facto, e os juízes aplicam
a lei (sublinhado meu). - O artigo, porém, parece ter em vista, não tanto a
questão das fontes de direito, mas antes a
distinção entre as funções dos jurados e dos
juízes. Tanto mais que a responsabilização dos
juízes continua a limitar-se a casos de abusos
do poder e prevaricações, ou a delitos e erros
de ofício (arts. 123 e 131). No entanto, há
outros indícios que apontam neste sentido de um
entendimento da função de julgar como dependendo
de critérios mais alargados do que a simples
observância da lei. - O desenho constitucional do poder judicial não
oferece grandes singularidades. Os princípios
clássicos da independência judicial - garantida,
nomeadamente, pela inamovibilidade (ou
perpetuidade) dos juízes -, do julgamento por
júri, da responsabilidade dos agentes da justiça,
da publicidade e simplificação processual, da
garantia do foro natural e da garantia de recurso
estão consagrados.
53O Poder judicial
- O sentimento antiletrado polarizou-se em três
questões - a da admissão do júri, a do âmbito das
instituições não judiciais de resolução de
conflitos e a das magistraturas electiva. - Quanto ao júri a questão politicamente mais
emblemática - ele era considerado pelo pensamento
liberal como uma das garantias basilares da
liberdade civil. Por isso, foi admitido
facilmente em 1822, como instância de apuramento
dos factos, tanto nas causas cíveis (onde a sua
intervenção foi, todavia, menos pacífica) como
nas causas crime. - A reforma judicial de Mouzinho (Decreto nº 24, de
16.5.1832), tornou obrigatória a sua intervenção
em todas as causas, na decisão da matéria de
facto. A limitação das funções do júri à
apreciação da matéria de facto era, já de si, uma
solução moderada, pois deixava aos juízes de
direito aspectos decisivos da questão. - Todavia, o júri - sobretudo no cível - era
objecto de críticas severas, baseadas no
tecnicismo das questões jurídicas e na falta de
aptidão dos leigos para lidar com elas, mesmo nos
aspectos de facto. - O desenho constitucional do poder judicial não
oferece grandes singularidades. Os princípios
clássicos da independência judicial - garantida,
nomeadamente, pela inamovibilidade (ou
perpetuidade) dos juízes -, do julgamento por
júri, da responsabilidade dos agentes da justiça,
da publicidade e simplificação processual, da
garantia do foro natural e da garantia de recurso
estão consagrados.
54A independência dos tribunais a teoria e a
prática
- Apesar de todas as garantias de independência da
magistratura, a opinião corrente não era tão
lisonjeira. Céptico quanto ao alcance real das
excelências da magistratura cartista,
nomeadamente quanto à sua independência, se
mostra, por exemplo, Trindade Coelho - "O poder judicial é independente (Carta, art.
118.) e sem embargo das causas legais que
conspiram contra a independência do poder
judicial, este é, ainda hoje, um dos mais
respeitáveis do Estado. Com efeito, a
independência do poder judicial vai sendo mais
nominal do que efectiva. Os magistrados que o
constituem não só são nomeados pelo poder
executivo, art. 75. 3., mas são colocados
nesta ou naquela comarca (melhor ou pior sob o
ponto de vista económico ou da situação
geográfica) à mercê, exclusivamente, da vontade
do respectivo ministro, ou seja do poder
executivo e conquanto inamovíveis durante seis
anos, salvo nos casos e termos legais, tem-se
visto alterar a classificação de uma ou outra
comarca só para o efeito de desalojar dela o
respectivo juiz, que por algum motivo não agrada
à política. Acresce que os juízes se vêem
forçados a fazer obra constantemente por decretos
inconstitucionais do poder executivo, para
evitarem o ser incomodados - que as suas
sentenças em matéria crime podem ser revogadas
pela acção privativa do poder moderador - que as
suas próprias decisões em matéria cível são, não
raro, contrariadas pelo executivo, quando tais
decisões afectam o Estado em beneficio dos
direitos do cidadão - que em relação a várias
categorias de funcionários a acção judicial
criminal depende de autorizações do governo,
Código Administrativo, art. 431. (garantia
administrativa) etc. E, como se tudo isto não
bastasse, a própria função de julgar tem sido
cometida, não só a tribunais e estações especiais
de variadíssimas categorias, estranhas ao poder
judicial, mas inclusive a funcionários do poder
executivo, de bem inferior situação na escala
hierárquica, e portanto sem habilitações"